Tocamos flauta para vós e não dançastes;
fizemos lamentações e não chorastes!

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 7,31-35
Naquele tempo, disse Jesus: 31 “Com quem hei de comparar os homens desta geração? Com quem eles se parecem? 32 São como crianças que se sentam nas praças, e se dirigem aos colegas, dizendo: ‘Tocamos flauta para vós e não dançastes; fizemos lamentações e não chorastes!’ 33 Pois veio João Batista, que não comia pão nem bebia vinho, e vós dissestes: ‘Ele está com um demônio!’ 34 Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e vós dizeis: ‘Ele é um comilão e beberrão, amigo dos publicanos e dos pecadores!’ 35 Mas a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos”. Palavra da Salvação.

Ler este evangelho me trouxe um desconforto. Reclamar parece tão natural, quase automático, que quando o Evangelho, de forma direta ou indireta, nos mostra que essa atitude pode ser estéril, infrutífera ou até mesmo contrária ao caminho de fé, nasce um choque interior. É como se houvesse um espelho diante de nós: percebemos que não se trata apenas de “alguns” que reclamam, mas de nós também.

Este texto de Lucas 7,31-35 foi proposto para a liturgia do dia 17 de setembro, 4ª feira da 24ª semana do Tempo Comum. De fato, reclamar é uma das atitudes mais estruturais nossas. Algumas pessoas a nossa volta são mais pesadas e negativas. Outras são mais acomedidas e despercebinas neste comportamento (e nós, como somos?). Mas o fato é que todo mundo reclama. Então comecei a pensar nesta característica inerente do ser humano. Reclamar parece ser uma das marcas mais universais da condição humana. Não importa o contexto: no trânsito, no trabalho, em casa, diante da política ou até mesmo nas redes sociais, a queixa é um hábito recorrente. Mas por que o ser humano reclama tanto? A insatisfação constante é apenas um traço cultural, um sintoma psicológico ou um sinal de algo mais profundo?

Freud, em O mal-estar na civilização (1930), sustentou que o ser humano vive condenado a uma insatisfação permanente. A realidade, a cultura e a convivência social limitam a realização de nossos desejos mais profundos. Daí surge o mal-estar, inevitável, que se expressa em frustrações e queixas. Reclamar é, portanto, quase uma necessidade da psique: um sintoma de que o desejo nunca encontra plena satisfação.

Outros psicanalistas confirmaram essa perspectiva. Melanie Klein mostrou que a inveja e o ressentimento acompanham o indivíduo desde cedo, muitas vezes projetando frustrações sobre os outros. Já Lacan radicalizou: o ser humano é um “sujeito do desejo” e, justamente por desejar sempre o que lhe falta, nunca se satisfaz. A queixa não é um acidente, mas o retrato da nossa estrutura desejante.

Já a antropologia entende a reclamação menos como falha individual e mais como fenômeno cultural. Marcel Mauss, ao falar das trocas sociais, mostra que o equilíbrio das relações envolve expectativas e obrigações recíprocas. Reclamar, nesse sentido, é uma forma de marcar desajustes: quando algo não corresponde ao esperado, a queixa entra como sinal de tensão na rede de trocas.

Clifford Geertz, atento aos símbolos, apontaria que reclamar também pode ser um código cultural. Em muitas comunidades, reclamar em grupo cria pertencimento e coesão: trata-se menos de resolver problemas e mais de reforçar laços. Já David Graeber, crítico das burocracias modernas, via na reclamação cotidiana uma reação espontânea às microviolências do sistema: filas, hierarquias, papéis sem fim. Reclamar, nesse caso, é quase um ato de resistência contra o esmagamento diário.

A sociologia também oferece chaves potentes. Marx interpretaria a insatisfação crônica como efeito da alienação: o trabalhador se queixa porque não controla sua vida nem o fruto de seu trabalho. Weber, por sua vez, falaria do “desencantamento do mundo”: a racionalização e a burocracia aprisionam o indivíduo numa “gaiola de ferro”, de onde brotam queixas contínuas.

Durkheim traz outra luz: em tempos de anomia, quando as normas sociais deixam de regular desejos e expectativas, a insatisfação coletiva explode em frustração e murmuração. A Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse) acrescenta: reclamar faz parte de uma vida administrada pela indústria cultural. Mas paradoxalmente, a queixa cotidiana raramente leva à transformação; ao contrário, acaba neutralizada pelo próprio sistema.

A filosofia não poderia deixar de se pronunciar. Schopenhauer talvez seja o mais radical: a vida, para ele, é marcada pela dor, e reclamar é apenas a expressão natural desse sofrimento. Nietzsche, em contraste, vê na queixa um sintoma do “espírito ressentido”: ao invés de afirmar a vida, criamos valores negativos e permanecemos presos à moral de escravos. A solução? O amor fati: amar o destino, inclusive suas dores, sem lamentação.

Camus, no existencialismo, fala do absurdo: há um descompasso entre nossos desejos e o mundo. Reclamar é, em parte, uma resposta ao absurdo. Mas, em vez de se resignar, o homem deve encarar a vida com revolta lúcida, criando sentido apesar do vazio. Já Byung-Chul Han, em tempos mais recentes, aponta para a “sociedade do cansaço”: o excesso de positividade e de cobranças internas nos leva a frustrações contínuas. Para ele, a saída está em recuperar o silêncio, a contemplação e a pausa.

Mas existe solução?

Percebe-se que esses pensadores mais descrevem o problema do que oferecem uma cura. Freud admite que a vida nunca será plenamente satisfatória, cabendo buscar compensações parciais. Nietzsche sugere afirmar a vida sem ressentimento. Camus nos chama a viver o absurdo com coragem. Byung-Chul Han recomenda resistir ao excesso com silêncio e descanso. Nenhum, contudo, promete uma resposta definitiva. E isto é um traço das ciências sociais. Não existem respostas definitivas. A insatisfação permanece estrutural. É nesse ponto que a visão bíblica se distingue.

A visão bíblica também não oferece uma cura. Deixa eu adiantar! A Escritura conhece bem a tendência humana de reclamar. O povo de Israel, no deserto, murmura repetidamente contra Deus e contra Moisés (Êx 16; Nm 14). Essa murmuração é vista como falta de fé, como incapacidade de confiar. Ao mesmo tempo, a Bíblia também registra salmos de lamento (Sl 13; Sl 22; Sl 42), em que a queixa se transforma em oração. Aqui, reclamar não é negar a fé, mas abrir diante de Deus a dor e a frustração.

No Novo Testamento, Paulo adverte: “Fazei tudo sem murmurações nem contendas” (Fl 2,14). Ele reconhece, porém, que toda a criação “geme” à espera da redenção (Rm 8,22-25). O gemido humano é assumido pelo Espírito como oração de esperança.

O exemplo máximo está em Jesus na cruz. Ao citar o Salmo 22, no auge do seu sofrimento, na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Cristo ali dá voz à mais radical das queixas humanas. Mas, ao mesmo tempo, entrega-se confiante ao Pai. Assim, a murmuração se converte em confiança e esperança.

Filosofia, psicanálise, antropologia e sociologia concordam: reclamar é parte constitutiva da condição humana. A insatisfação é estrutural, seja pelo desejo nunca saciado, pela cultura que nos limita, pela alienação social ou pelo absurdo existencial. Cada campo oferece estratégias de lidar com isso: resignação, afirmação da vida, revolta lúcida, contemplação.

A teologia bíblica, porém, ao meu ver, vai além: não pede que o homem simplesmente deixe de reclamar (diga-se de passagem, que nenhuma destas ciências acima pedem isto). Ela (a teologia bíblica) não nos pede o impossível de silenciar as nossas queixas (como alguns líderes religiosos até propõem em suas reflexões). Pelo contrário, ela nos convida a dar-lhes um novo destino: transformar a reclamação em oração. A murmuração que se perde no vazio não frutifica, mas o lamento que se eleva a Deus se torna fonte de vida. É nesse encontro que a queixa se transfigura em confiança, a frustração floresce em esperança e o gemido humano se revela como a mais autêntica expressão de fé.

Mas o que isto muda? Nas ciências humanas, o máximo que se propõe é administrar a insatisfação: aceitar o destino (Nietzsche), encarar o absurdo (Camus), encontrar pausas (Byung-Chul Han). A Bíblia, porém, oferece uma saída distinta: a queixa não é negada nem reprimida, mas redirecionada para Deus. Isso muda tudo, porque o lamento humano deixa de ser apenas sintoma de mal-estar e passa a ser gesto de fé e esperança.

O que nasce desse movimento? A queixa, quando entregue a Deus, pode gerar consolo e força. O vazio da murmuração se converte em sentido espiritual: o gemido humano torna-se oração inspirada pelo Espírito (Rm 8,26). E o ciclo da insatisfação é quebrado, porque a dor deixa de aprisionar e começa a apontar para a esperança.

Em última análise, reclamar pode ser humano, mas transformar a reclamação em diálogo com Deus é o que abre a possibilidade de redenção.

E aí? Porque o desconforto em falar disto?

O inicial desconforto que senti ao ler o evangelho é legítimo porque o texto bíblico não permite que a gente terceirize a responsabilidade. Ele não fala apenas “dos outros”, mas me interpela: “E eu, como lido com a minha tendência de reclamar?” Esse reconhecimento gera incômodo porque expõe fragilidades que preferimos disfarçar.

No cotidiano, reclamar parece um direito legítimo. No Evangelho, porém, descobrimos que esse mesmo impulso pode se tornar murmuração que nos afasta da confiança em Deus. Isso desmonta nossa lógica e cria tensão: algo que eu achava normal talvez precise ser transfigurado.

O desconforto é, muitas vezes, o primeiro passo da graça. Ele indica que o texto não passou despercebido, mas provocou movimento interior. O convite bíblico não é “calar a boca e aguentar”, mas dar um destino novo à queixa: transformá-la em oração, súplica e confiança.

Ou seja, o desconforto nasce porque o Evangelho tira a reclamação do terreno do “natural e inevitável” e a coloca no horizonte da fé e da confiança. Ele nos revela que não basta apenas reconhecer nossa insatisfação — somos chamados a dar-lhe uma saída mais alta, mais fecunda, mais divina.


Ir. Julia de Almeida, pddm
Ir. Julia de Almeida, pddm

Autora do texto: Ir. Julia de Almeida, pddm.
Irmã Pia Discípula do Divino Mestre. Mestra em Comunicação e Semiótica, pela PUC/SP.

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