O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é mais do que uma data no calendário: é um marco de memória, reconhecimento e responsabilidade social. Criado para valorizar a história, a cultura e a contribuição da população negra para o Brasil, o dia também nos convida a olhar de frente para as desigualdades raciais que ainda persistem. Sua escolha está ligada à morte de Zumbi dos Palmares, símbolo maior da resistência contra a escravidão, e ao trabalho contínuo do Movimento Negro brasileiro, que transformou memória em consciência política.
A origem da data: da história à ação política
O 20 de novembro marca o assassinato de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, morto em 1695 após longa perseguição dos colonizadores. Palmares foi o maior e mais duradouro território de resistência negra no período colonial. A morte de Zumbi, cujo corpo foi exposto em praça pública para “dar exemplo”, gerou justamente o contrário: consolidou-o como um símbolo de luta por liberdade, autonomia e dignidade.
A data, no entanto, é uma construção contemporânea. Em 1971, ativistas negros do Rio Grande do Sul propuseram pela primeira vez o 20 de novembro como dia de reflexão racial. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) adotou oficialmente o 20 de novembro como data nacional, em contraposição ao 13 de maio, visto como uma celebração da abolição sem reconhecimento das lutas dos próprios negros. O objetivo disto era claro: deslocar o protagonismo da narrativa da abolição, tradicionalmente centrada na ação da Princesa Isabel, para a população negra e sua resistência ativa.
O fortalecimento da data veio gradualmente por meio de leis. A Lei 10.639/2003 incluiu o 20 de novembro no calendário escolar e tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira. A Lei 12.519/2011: oficializou o Dia Nacional da Consciência Negra. Em diversos estados e municípios o reconhecem como feriado, a exemplo de SP, RJ, AL, MT, entre outros.
Assim, o Dia da Consciência Negra nasce da junção entre memória histórica, movimento social e reconhecimento institucional.
Por que o 20 de novembro?
A escolha da data reflete um posicionamento ético e político. O movimento negro argumenta que o 13 de maio, embora marque a abolição, reforça uma narrativa que apresenta a liberdade como concessão, apagando os séculos de resistência negra.
Já o 20 de novembro celebra a luta, a autonomia, a organização comunitária e a capacidade de resistência da população negra frente a um sistema de violência e dominação.
O Dia da Consciência Negra celebra, portanto, não apenas um personagem histórico, mas um legado coletivo.
Desafios contemporâneos: enfrentando narrativas de deslegitimação
Nos últimos anos, tornou-se comum ver circular discursos que tentam diminuir o valor da data atacando a figura de Zumbi dos Palmares. Frases como “Zumbi não era flor que se cheire” ou “matava seus próprios pares” surgem especialmente em contextos em que se tenta relativizar ou deslegitimar a luta antirracista.
É importante esclarecer alguns pontos. As fontes históricas sobre Palmares são escassas e, em grande parte, produzidas por colonizadores interessados em justificar ataques e enfraquecer a resistência. Portanto, narrativas negativas sobre líderes quilombolas muitas vezes serviam como instrumento político da época e continuam sendo utilizadas hoje com funções semelhantes.
Discutir a complexidade de figuras históricas é legítimo. O problema é usar interpretações duvidosas ou anacrônicas para desvalorizar o significado da data.
Outro desafio a ser considerado é que os Movimentos sociais não dependem de “heróis perfeitos”. Nenhum processo social ou histórico foi construído por figuras imaculadas. Martin Luther King, Gandhi, Tiradentes e tantos outros também têm aspectos controversos em suas trajetórias. Isso não anula o valor das causas que defenderam.
Da mesma forma, o Dia da Consciência Negra não existe para canonizar Zumbi. Ele existe para reconhecer a existência de quilombos como espaços de liberdade; a resistência da população negra à escravidão; e a continuidade da luta por justiça racial. Símbolos históricos representam valores coletivos, não biografias perfeitas.
A quem interessa esse discurso?
É importante perguntar: por que essas críticas ressurgem sempre no 20 de novembro? Muitas vezes, elas funcionam como estratégia para desviar o foco do racismo estrutural; também como uma forma de desqualificar a pauta da igualdade racial e um contra-ataque retórico que evita enfrentar desigualdades atuais.
Enquanto se tenta provar se Zumbi era “bom ou mau”, deixa-se de discutir:
- violência policial;
- desigualdade no mercado de trabalho;
- exclusão escolar;
- racismo religioso;
- falta de representatividade;
- desigualdade de renda e acesso a direitos.
Por isso, ao dialogar com essas críticas, é essencial recentrar a conversa: o 20 de novembro não celebra a perfeição de um indivíduo, mas a luta pela liberdade e pela igualdade.
O que significa celebrar a Consciência Negra hoje
Celebrar o Dia da Consciência Negra é reconhecer que a população negra construiu este país em suas dimensões culturais, linguísticas, religiosas, políticas e afetivas. É reconhecer que o racismo ainda é uma realidade estruturante e exige enfrentamento cotidiano. E que a educação, a memória e o diálogo são caminhos fundamentais para transformar a sociedade. É também reafirmar que a luta por igualdade racial é tarefa de todas e todos, não apenas da população negra.
Dia da Consciência Negra: memória que inspira compromisso
O Dia da Consciência Negra é, acima de tudo, um convite à responsabilidade coletiva. Ele nos lembra que a liberdade não foi presente: foi conquista. E continua sendo.
Ao reconhecer a importância histórica de Zumbi e dos quilombos, homenageamos a resistência que moldou o Brasil. Ao enfrentar narrativas que tentam deslegitimar essa memória, fortalecemos o compromisso com a verdade histórica e com a justiça social. Ao celebrar a Consciência Negra, reafirmamos um projeto de futuro: um país onde a dignidade não seja privilégio, mas direito.
Que este 20 de novembro inspire escuta, aprendizado, ações concretas e coragem para que a memória da resistência negra siga iluminando caminhos de inclusão, respeito e igualdade.
Ir. Julia de Almeida, pddm

