“Eles nos demonstraram uma benevolência fora do comum” (At 28,2), lema escolhido para esta semana de oração: “24 a 31 de maio”. As pessoas que haviam sofrido um naufrágio, durante a viagem de Paulo a Roma, foram acolhidas com generosidade pelos habitantes da ilha de Malta. Essa ilha, situada no coração do mar Mediterrâneo, marca o encontro de civilizações, culturas e religiões. A leitura de “Atos dos Apóstolos 27,18–28,10”, utilizada na festa em Malta para celebrar a chegada da fé cristã através de Paulo, é o texto indicado para iluminar a oração e as celebrações pela unidade dos cristãos, no respeito às diferenças e comunhão na diversidade. O texto bíblico mostra o drama enfrentado pelos diversos grupos de passageiros do navio, para vencer as divisões e garantir a vida para todos em meio à tempestade. A travessia do mar Mediterrâneo reflete também a situação de tantos migrantes e refugiados em busca de vida mais digna.

& Atos dos Apóstolos 27,18–28,10, últimos capítulos do livro que foi escrito em torno do ano 90 da era cristã, quando a perseguição aumentava com o imperador Dominicano (81–96).  Segundo Fernando Altemeyer, o livro dos Atos dos Apóstolos se estrutura em cinco grandes sessões ou blocos:

1. Origens da Igreja em Jerusalém, onde a questão ecumênica está no conflito com o judaísmo legalista. O preço humano desse conflito serão as vidas ceifadas de Estevão e Tiago.

2. Perseguição e missão ecumênica: de Jerusalém a Antioquia, onde a crise ecumênica se situará no encontro das diversas identidades culturais dos samaritanos, antioquenos e etíopes. Aqui vivemos a conversão de Paulo e a perseguição de Pedro.

3. Primeira viagem e Concílio, sendo questão chave no ecumenismo o debate em Jerusalém sobre a circuncisão e os costumes judaicos.  A proclamação de Pedro e o decreto conciliar abrirão caminho para a liberdade ecumênica sem rupturas internas.

4. Grande viagem e fundação das Igrejas na Ásia e na Grécia, sendo o tema ecumênico central a inserção do Evangelho de Cristo no mundo cultural grego e o confronto com as autoridades e estruturas imperiais de Roma.

5. Paulo prisioneiro, desde Jerusalém (ano 58) e Cesareia, e o complexo processo diante de Félix com a narração da viagem à capital do Império, Roma (no outono-inverno do ano 60), e sua prisão domiciliar entre os anos 61-63.

Paulo de Tarso é o defensor de metodologia e pedagogia ecumênicas, marcadas pela abertura e pela superação de imposições. De perseguidor a evangelizador, vive na carne o drama das primeiras divisões entre os cristãos. O clímax da crise ele vive na Igreja de Éfeso. A experiência pessoal de Damasco irá impregnar-se em seus atos e palavras. Sua conversão constitui-se na reviravolta histórica fundamental no movimento cristão primitivo. Depois do que Paulo viveu ali em Damasco, tudo será feito como uma grande tarefa ecumênica.  O “néo-apóstolo ecumênico”, após permanecer três dias sem ver, comer e beber, está preparado para empreender o caminho novo. Escreve cartas para animar e superar conflitos e preconceitos. Fala do único corpo de Cristo em suas epístolas e realiza viagens para costurar e compor um corpo firme e unido. Paulo reconhece que todos têm a possibilidade de conhecer a vontade de Deus e viver o Evangelho (Vida Pastoral – Julho-Agosto de 2001).

& Atos dos Apóstolos 27,1-12: “Embarque para Roma”

A viagem a Roma é consequência do recurso de Paulo ao imperador (25,11; 26,32), mas também a realização de um projeto apostólico (19,21) e de um desígnio providencial (23,11). Paulo viaja em companhia de outros prisioneiros e do centurião com seus soldados. A navegação dependia de ventos favoráveis. A escala em Sidônia possibilitaPaulo “encontrar seus amigos e receber assistência deles” (27,3). Ao chegar a Mira, embarcam em um navio comercial vindo de Alexandria, no Egito, carregado de trigo (27,38) e com outros passageiros. Em Bons Portos tiveram que decidir os rumos da viagem. Já havia passado o “jejum”, o Dia da Expiação celebrado entre o fim de setembro e o início de outubro, e aproximava-se o inverno, quando a navegação era suspensa. Paulo aconselha a permanecer ao abrigo de Creta, a fim de preservar a carga, o navio e, sobretudo as vidas. O piloto queria chegar a Fênix, um porto de Creta mais seguro para passar o inverno. O centurião desejava continuar a viagem e prevalece sua opinião.

& Atos dos Apóstolos 27,13-26: “A tempestade”

O início do inverno no mar Mediterrâneo oriental se caracterizava pela formação de repentinas tempestades. Em tais circunstâncias abandonar a costa meridional de Creta era uma decisão imprudente, pois a embarcação ficava exposta a fortes ventos do norte como o “euraquilão”. Por isso, enfrentaram uma violenta tempestade e o apóstolo Paulo lembra sua predição profética para não deixar Creta. Neste momento difícil, a presença de Paulo anima a esperança dos tripulantes e passageiros:Convido a manter a coragem; pois nenhum de vós perderá a vida” (27,22). Deus manifesta seu plano salvífico mediante o apóstolo Paulo, que transmite confiança a todos os seus companheiros de travessia: “Confio em Deus, que tudo acontecerá como me foi dito” (27,23-25).  “Devemos encalhar em alguma ilha”.

& Atos dos Apóstolos 27,27-44: “Salvos do naufrágio”

 O navio continuava à deriva no mar “Adriático”, parte do Mediterrâneo entre Creta (Grécia) e a Cicília (Itália). Os marinheiros pressentem a aproximação de terra e têm a intenção de abandonar o navio. Paulo comunica paz, promove o diálogo e a colaboração entre todos os passageiros. Ele mesmo se fortalece ao “tomar o pão, dar graças a Deus, partir o pão e comer”, exemplo que reanima todos a se alimentarem também (27,33-38). Esta comida tem sentido eucarístico e o barco neste momento simboliza as comunidades dos seguidores de Cristo, navegando entre ondas tormentosas, porém oferecendo segurança aos que estão a bordo.  O navio finalmente encalha, mas os soldados decidem matar os prisioneiros, os mais vulneráveis (27,41-42). A vida dos descartáveis é conservada em vista de Paulo, instrumento de salvação ao qual Deus confiou a vida de todos os seus companheiros de viagem (27,24).  Assim, “todos chegaram sãos e salvos em terra”.

& Atos dos Apóstolos 28,1-10: “Paulo em Malta”

Malta, com seus portos, servia de base para o comércio no mar Mediterrâneo e era utilizada para passar o inverno. Os que haviam sofrido o naufrágio foram acolhidos com amabilidade: “Eles nos demonstraram uma benevolência fora do comum” (28,2). Unidos ao redor do fogo com os povos da ilha, os grupos que estavam no navio superam as divisões e fortalecem a comunhão na diversidade. “Acolhida e hospitalidade” (28,7) contribuem para o apóstolo Paulo evangelizar, mesmo sob a total vigilância da tropa. A víbora, o poder opressor (Mc 16,18; Lc 10,19) não impede o prisioneiro Paulo de realizar sinais libertadores em favor da vida e dignidade das pessoas.  O pai de Públio, governador da ilha, estava doente e “Paulo foi visitá-lo, rezou, impôs-lhe as mãos e o curou” (28,8). Os habitantes da ilha reconhecem que o apóstolo Paulo é sinal da presença de Deus: “Os doentes vinham ter com ele e eram curados” (28,9).  Eles nos deram numerosas provas de estima, e quando partimos “proveram-nos de todo o necessário” (28,10).  Acolhem com gratidão a Boa Nova que chega por meio de Paulo, o apóstolo de todas as gentes.

O cuidado, a solidariedade demonstra sintonia com Jesus e seu projeto (Mt 25,31-46). O papa Francisco fala dos migrantes e refugiados, forçados como Jesus Cristo a fugir. Convida a acolher, proteger, promover e integrar os deslocados. Quase todos os dias, a televisão e os jornais dão notícias de refugiados que fogem da fome, guerra e outros perigos graves, em busca de segurança e de uma vida digna para si e para as suas famílias. Em cada um deles, está presente Jesus, forçado – como no tempo de Herodes – a fugir para Se salvar. Os conflitos e as emergências humanitárias, agravadas pelas convulsões climáticas, aumentam o número dos deslocados e se repercutem sobre as pessoas que já vivem em grave estado de pobreza. Muitos dos países atingidos por estas situações carecem de estruturas adequadas, que permitam atender às necessidades daqueles que foram deslocados. 

            A pandemia recordou-nos como é essencial a corresponsabilidade, pois só é possível enfrentar a crise com a contribuição de todos, mesmo de categorias frequentemente subestimadas. Devemos encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade.  É necessário colaborar para construir. O apóstolo Paulo recomenda a superar as divisões e a permanecer unidos no mesmo espírito(1Cor 1,10). A construção do Reino de Deus é um compromisso comum a todos os cristãos. Para salvaguardar a Casa Comum e torná-la cada vez mais parecida com o plano original de Deus, devemos empenhar-nos em garantir a cooperação internacional, a solidariedade global e o compromisso local, sem deixar ninguém de fora.

No próximo dia 24 de maio terá início o Ano Especial dedicado à “Laudato Si”. No Brasil, em particular, é urgente concretizar essa Encíclica no contexto da Amazônia. Estamos bem próximos do ponto de não retorno, à beira da desertificação desse bioma. O Grito da terra e dos pobres na Amazônia chega ao limite, denuncia Pe. Dario Bossi. E, com a pandemia, todos estamos na mesma tempestade mesmo se, em barcos muito diferentes: alguns mais frágeis, outros mais fortes. Porém, mais uma vez, os mais pobres estão sendo as maiores vítimas de um mundo desajustado que traiu o sonho de Deus.

Que o clamor em prol de vida digna para todos leve a superar as divisões e desigualdades como propõe o apóstolo Paulo ao dizer: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Ao longo desta semana de oração pela unidade dos cristãos, invoquemos confiantes: “Vinde, Espírito de Deus, e enchei os corações dos fiéis com vossos dons! Acendei neles o amor como um fogo abrasador! Vós que unistes tantas gentes, tantas línguas diferentes numa fé, na unidade e na mesma caridade”.     

Irmã Helena Ghiggi, da congregação Discípulas do Divino Mestre.

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