MEMÓRIA E LOUVOR NO DIA A DIA

Judite Paulina Mayer*

Artigo publicado na Revista de Liturgia, n. 273-maio/junho de 2019, pp. 12 a 14.

Na oração cotidiana, o judeu religioso torna presente a memória e o louvor das maravilhas realizadas por Deus em favor de seu povo. Tendo sempre como pano de fundo a bênção, a estrutura dos momentos diários da oração possui variações, mas em linhas gerais apresenta a mesma disposição. Entre as orações recitadas diariamente, pela manhã, à tarde e na vigília da noite, encontramos o Kadish[1], o Shema Israel[2] e a Tefilá[3]. Os três momentos diários da oração lembram as oferendas do serviço[4] no Templo: manhã (Shaarit), tarde (Minrá) e vigília da noite (Arvit).

O Shema faz parte essencial da oração da manhã e da noite, pois a Torá limita as horas de recitação desta oração diária, conforme Dt 6,7: quando te deitares e quando levantares.

https://revistadeliturgia.com.br/produto/revista-de-liturgia-ed-273-so-tu-noite-feliz-soubeste-a-hora-em-que-cristo-da-morte-ressurgia

Percorrendo as orações, podemos contemplar sua construção ao longo dos séculos, integrando a contribuição das sucessivas gerações. O desenrolar da oração muitas vezes se desenvolveu num entrelaçamento de versículos de vários salmos e citações proféticas. É o que tentaremos descobrir ao longo dos serviços cotidianos.

Ao amanhecer, um louvor – Sha’arit Sha’arit, a oração da manhã, vem da palavra hebraica que significa amanhecer. É o momento em que se proclama o amor luminoso de Deus, que se renova a cada manhã. Em geral, no início da oração, é recitado o texto da Torá[5] lembrando o que Moisés disse ao povo: Lembrai-vos do dia em que saíste do Egito, da casa da escravidão… Segue-se o ofício com as bênçãos do dia, recitação do Shemá e Amidá. Para cada dia da semana há um salmo próprio[6].

Há uma coletânea de versículos sálmicos que aparece em muitos dos livros de oração com pequenas modificações. Ela nasceu com um refugiado, o rabino Profiat Duran, durante os massacres ocorridos na Espanha, em 1391. Os versículos imploram a misericórdia divina confessando a fé na compaixão do Eterno que nunca falhou com seu povo. Ela confirma a fé de Israel, mesmo se o Templo foi destruído, pois, como diz Isaías: o trono de Deus está nos céus e a terra é o apoio de seus pés[7]. Seja no exílio ou na dispersão, o povo pode sempre contar com o auxílio do Eterno. Eis como se apresenta a coletânea de versículos sálmicos: Eterno, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, nossos pais. Conserva a inclinação dos pensamentos do coração do Teu Povo, voltando seu coração para Ti. Exaltai o Senhor, nosso Deus, prostrai-vos ante o escabelo de seus pés: Ele é Santo. Exaltai o Senhor nosso Deus, prostrai-vos ante seu santo monte, porque Santo é o Senhor, nosso Deus. Ele, na sua misericórdia, perdoa o pecado e não aniquila.

Muitas vezes refreia sua ira e não deixa agir todo o seu furor. Senhor, não me recuses tua misericórdia! Tua fidelidade e tua graça me protejam sempre. A tua justiça é a justiça eterna e a tua Torá é verdadeira. Lembra-te, Senhor, do teu amor, e da tua fidelidade desde sempre. Reconhecemos o poder de Deus, a sua majestade sobre Israel, seu poder sobre as nuvens. Do seu santuário, Deus é terrível!

O Deus de Israel dá força e vigor a seu povo, bendito seja Deus! Ó Senhor, Deus justiceiro, manifesta-te! Levanta-te, juiz da terra, paga aos soberbos o que merecem! Do Senhor é a salvação. Sobre o seu povo desça a sua bênção. O Senhor dos exércitos está conosco, nosso refúgio é o Deus de Jacó. Ele abriu o mar para fazê-los passar, segurou as águas em pé como num dique. Senhor dá ao rei a vitória, atende-nos, quando te invocamos. Tu nunca deixas os que te procuram, ó Eterno! Foi do agrado do Eterno, por amor a sua própria justiça, dar magnificência à sua Torá e torná-la poderosa[8].

Não podemos deixar de falar do cântico de Moisés, entoado por Miriam, recitado na oração da manhã que celebra Deus em forma de profissão de fé. Ele se completa com a recitação da passagem do Mar Vermelho, onde mais uma vez se reconhece a gratuidade do amor de Deus pelo seu povo Israel no momento da libertação da escravidão do Egito.

Retomando a vida – Minrá

Minrá se localiza no meio da atividade profissional e a pessoa deve fazer um esforço particular para interromper suas atividades e se colocar em oração. Ao fazer memória do sacrifício vespertino, a oração é a Amida que forma a essência de todos os serviços litúrgicos.

A liturgia deste momento é mais simples. Ela se inicia com o salmo 145. Neste salmo encontramos pelo menos treze atributos divinos[9] que confirmam sua misericórdia. O Talmud recomenda recitá-lo três vezes ao dia, pois o fiel que assim proceder tomará parte no mundo futuro conforme o verso 16: abres tua mão e sacias todos os viventes que amas[10]. Por essa razão, sua recitação é precedida pelos seguintes versos[11]: Felizes os habitantes da tua casa: eles te louvam sem cessar…[12]Feliz o povo que tem tudo isso! Feliz o povo que tem a Deus por Senhor![13] Antes do Salmo 145, recita-se a parte da Torá[14] relativa ao sacrifício cotidiano do Templo.

Segundo Rashi[15], este salmo contribui para confortar o ser humano que está sob a pressão do trabalho e modificar seu humor preocupado e abatido, ou mesmo distraído e frio, para voltar à “alegria calorosa”, a qual “é uma das condições exigidas para a realização da oração”[16].

As palavras do profeta Isaías[17] lembram o dever de sustentar os pobres, precisamente no fim do jejum, a fim de que o necessitado não seja obrigado a prolongar o seu jejum por falta de alimento. Na oração de Minrá, que significa oferenda, é o momento em que o dia declina, implora-se, sem hinos e sem cantos, a presença do Senhor. A partir do século XIX se generalizou o costume de fazer essa oração ao pôr-do-sol e em seguida recitar Arvit, a oração da noite, porque são momentos considerados como hora da misericórdia.

A misericórdia vela por nós – Maariv

Quando as sombras noturnas nos tornam impotentes e incertos, é o momento de se invocar a misericordiosa fidelidade de Deus. Por isso Maariv se inicia com a invocação: Ele é misericordioso (Vehu Rahum), Ele perdoa o pecado e não destrói! Muitas vezes Ele retém o seu furor e não desperta sua cólera! Senhor, Salva-nos! Ó Rei responde-nos no dia em que te invocamos![18]. Ela dá à oração da noite seu real significado. Segundo o Talmud[19] Jacó fixou a oração da noite, como podemos ler em Gn 28,11. Assim, em muitos lugares se desenvolveu o costume de realizar a oração de Maariv antes do cair da noite. Maariv, como os demais ofícios, inclui a Amida como parte essencial do serviço litúrgico. Como Minrá, esta oração se inicia com o salmo 145, com os atributos divinos que confirmam a misericórdia de Deus, e inclui, também, o salmo 134, que serve de transição entre as ocupações profissionais do dia e a oração da noite.

A escolha deste salmo de peregrinação foi determinada pela alusão que inclui a citação sobre os servidores do Senhor que permanecem na casa do Senhor durante a noite. O Talmud recomenda que, à noite, ao voltar do trabalho dos campos, os fieis se dirijam à casa da reunião, e, segundo seu costume, leiam as Escrituras, estudem e, em seguida, digam o Shema e a Amida.

Os cabalistas[20] acrescentam mais três versículos a essa oração e o Talmud recomenda sua recitação três vezes cada um para que sejam memorizados para sempre. Seu conteúdo glorifica o Eterno como cidadela e proclama a felicidade daquele que Nele confia, tornando-o especialmente apto a formar uma transição para a noite, tempo de fragilidade humana e de profundo repouso dos nossos sentidos: “O Senhor de todo poder está conosco. Temos por cidadela o Deus de Jacó… Ó Senhor de todo poder, feliz o homem que conta contigo!… Ó SENHOR, dá vitória ao rei; responde-nos, quando clamarmos”[21].

A última oração do dia, na maioria das comunidades, é conhecida pela primeira palavra “Aleinu”, que significa “É nosso dever.” Esta oração conclui os três momentos da oração diária e é composta por duas orações: Aleinu e Al Kein. É uma das orações mais lindas de toda a liturgia. Em vários momentos históricos, ela foi causa de acusações e perseguições, por isso é difícil encontrá-la em sua forma original. Apresentamos a versão do Sidur completo[22].

É nosso dever (Aleinu) louvar ao Senhor de tudo, atribuir grandeza àquele que formou o mundo desde o seu princípio; que não nos fez para ser como as nações da terra, nem nos fez como as outras famílias da terra; Ele não definiu a nossa parte como a deles, nem a nossa sorte como todas as suas multidões. Mas nós nos inclinamos, dobramos nossos próprios joelhos, ficamos prostrados e louvamos perante o Rei que reina sobre todos os Reis, o Santo, Bendito seja Ele que expandiu os céus e estabeleceu os fundamentos da terra, e cujo precioso trono se firma nas alturas e a Divina Majestade do seu poder está estabelecida no mais alto dos céus. Ele é nosso Deus, e não há nenhum outro. Ele é nosso Rei, e não temos outro além Dele, pois assim está escrito na Sua Torá: “Sabe, pois, hoje e reflete no teu coração que o Eterno é Deus, o Um, acima no céu e abaixo sobre a terra: e não há nenhum outro”.

Por isso (Al Kein) em Ti colocamos nossa esperança, ó Senhor nosso Deus, em breve Tua poderosa glória, quando forem removidas as abominações da terra, e os ídolos exterminados, quando o mundo for regenerado pela soberania do Altíssimo, todos os mortais da terra invocarão Teu nome. Quando todos os maus, regenerados se voltarão para Ti, então, todos os habitantes do mundo reconhecerão e conhecerão que diante de Ti todos os joelhos se dobram, e toda língua prestará juramento diante de Ti, ó Senhor, nosso Deus, eles dobrarão os joelhos e ao teu nome glorioso darão a honra, pois eles aceitarão o jugo do Teu reino, e Tu serás eternamente sobre eles o Rei. Pois Teu é o reino, por toda a eternidade e tu reinarás em glória, como está escrito em Tua Torá: “O Senhor deve reinar eternamente sobre toda a terra[23]. E também diz; “E o Senhor será rei sobre toda a terra; naquele dia o Senhor será Um, e Um Seu nome”[24].

A tradição oral atribui essa oração a Josué no momento da conquista de Jericó ou ainda aos Homens da Grande Assembleia no período do Segundo Templo. Isso nos faz pensar nas narrativas evangélicas[25], onde muitas vezes encontramos Jesus em vigília de oração, em seu encontro com o Pai, talvez recitando sua profissão de fé e dizendo: O Senhor será rei sobre toda a terra; naquele dia o Senhor será Um, e Um Seu nome[26].

Judite Paulina Mayer é irmã da Congregação Nossa Senhora de Sion, professora de Sagrada Escritura, Salvador, BA.


[1] Cf. MAYER, Judite Paulina. A oração do Pai nosso e o Kadish na liturgia judaica. Revista de Liturgia, n. 206, março/abril 2008, p.18.

[2] Cf. MAYER, Judite Paulina. O Shema Israel: coração da oração judaica. Revista de Liturgia, n. 191, set/out. 2005, p.14.

[3] Cf. MAYER, Judite Paulina. Tefilá: a oração por excelência. Revista de Liturgia, n. 192, nov/dez. 2005, p.14

[4] Usar a palavra serviço para falar dos ofícios da sinagoga tem um significado muito importante. Em hebraico, avoda cuja tradução literal seria trabalho, é traduzido, em geral, por serviço; eved, da mesma raiz, significa servo. Quando os israelitas deixaram o Egito eles eram ‘servos’, escravos do faraó. A partir do Êxodo, os israelitas deixam de ser escravos do faraó para se tornarem ‘servos’ libertos do Senhor. A diferença entre a primeira e a segunda situação tem um nome: liberdade. O povo de Israel escolhe livremente servir ao Senhor. Sendo assim, toda a liturgia é um serviço de louvor ao Deus UM.

[5] Cf. Ex 13,1-17.

[6] Domingo: Sl 24; 2ª feira: Sl 48; 3ª feira: Sl 82; 4ª feira: Sl 94; 5ª feira: Sl 81; 6ª feira: Sl 93.

[7] Cf. Is 66,1.

[8] Cf. 2Cr 30,19; Is 66,1; Salmos 99,5.9; 78,38; 40,12; 25,6; 119,142; 68,36-36; 94,1; 3,9; 46,8; 84,13; 20,10; 9.

[9] Sl 145,v. 3: Senhor, tua grandeza é insondável; v. 5: Tu és glorioso; v.8: benevolente, misericordioso, lento para cólera, de grande fidelidade; v 9: és bom… cheio de ternura; v. 13: és veraz; v. 14: apoio dos que caem; v.17: és justo; v. 18: és próximo; v. 19: escutas e salvas; v. 20: és guardião.

[10] Cf. TB. Ber: 24b.

[11] Por isso, no serviço sinagogal, o Sl 145 é conhecido como Asherei [felizes], pois é a palavra que introduz a recitação deste salmo.

[12] Sl 84,5.

[13] Sl 144,15.

[14] Nm 28,1ss.

[15] Rabi Shlomo ben Ytzaak, conhecido pelo acróstico Rashi, viveu na França no século XI-XII. É célebre por seus comentários,

que tornaram o Talmud compreensível para seus contemporâneos, e até hoje é estudado como um dos grandes sábios do povo judeu.

[16] Cf TB. Ber. 31a.

[17] Is 58,6-7: Acaso o jejum que prefiro não será repartir o teu pão com o faminto, hospedar o desabrigado… Vestir o que está nu e jamais te esconder do pobre teu irmão?

[18] Sl 78,38: E Ele, o misericordioso, apagava a sua falta. Muitas vezes segurou a sua cólera e não despertou o seu furor.

[19] Talmud Berakhot 26,b.

[20] MUNK, Elie Le monde de prières. Paris: C.L.K.H., 1970, p.233.

[21] Sl 46,8; 84,13 e 20,10.

[22] Sidur completo com tradução e transliteração. Organização, edição e realização de Jairo Fridlin. S. Paulo: Sefer. 1997. p. 117.

[23] Cf. Ex 15,18.

[24] Cf. Zc 14,9

[25] Cf. Mt 14,23; Mt 26,36; Lc 6,12; Lc,22,41; Mc 6,46;Mc. 14,32, etc.

[26] Cf. Zc 14,9.

ASSINE A REVISTA DE LITURGIA!

FAÇA A ASSINATURA DA REVISTA DE LITURGIA!

Assinatura Anual Digital – R$40,00 para 1 ano
Revista com edições periódicas bimestrais.
Assinatura Anual Digital quantidade

Assinatura Anual DigitalRevista de Liturgia Edições Tags: anualassinaturadigitalliturgiapddmbrasilrevista

https://revistadeliturgia.com.br/produto/assinatura-anual-digital