A Fraternidade como Resistência: Um Ensaio sobre a Proposta Ético-Social da Fratelli Tutti

Por Ir. Julia de Almeida, pddm

Em um mundo marcado por polarizações, desigualdades e indiferença crescente, a encíclica Fratelli Tutti, publicada por Papa Francisco em 2020, propõe uma resposta radicalmente ética: a fraternidade universal e a amizade social como fundamentos de um novo pacto civilizatório. Longe de ser um apelo utópico ou ingênuo, a proposta do pontífice configura-se como uma crítica contundente aos sistemas econômicos, políticos e culturais que alimentam o descarte humano, o individualismo e o medo. Este ensaio argumenta que a Fratelli Tutti é um texto contracultural, que reivindica o amor ao próximo como critério político e existencial, convocando indivíduos e nações a refundarem suas relações sobre a base da dignidade compartilhada.

O primeiro aspecto que marca a encíclica é sua análise aguda da realidade contemporânea. O Papa denuncia uma globalização que separa as pessoas, embora conecte as economias: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (n. 12). Essa frase sintetiza a crítica de Francisco ao modelo de desenvolvimento centrado no lucro, que esvazia o sentido de comunidade. O crescimento das desigualdades e dos nacionalismos, segundo ele, reflete uma regressão ética e política: “Ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (n. 11). O Papa identifica ainda o enfraquecimento da política, dominada pelo marketing e pela destruição do adversário, e lamenta que “a política deixou de ser um debate saudável […] para o desenvolvimento de todos” (n. 15).

Diante desse cenário, Francisco propõe a fraternidade como alternativa à lógica do medo, do consumo e da exclusão. A inspiração vem de São Francisco de Assis, cujo amor “ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (n. 1). A fraternidade, tal como proposta, não é um sentimento abstrato, mas um imperativo ético-político que deve orientar estruturas sociais e decisões de Estado. Um exemplo claro está no apelo ao acolhimento dos migrantes: “Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros” (n. 39). A crítica atinge tanto o fechamento dos países ricos quanto a indiferença que transforma seres humanos em “objetos descartáveis” (n. 18).

A parábola do Bom Samaritano, centro simbólico da encíclica, serve como chave interpretativa para toda a reflexão. Diante do homem ferido à beira do caminho, apenas o samaritano – estrangeiro e marginalizado – oferece ajuda concreta. O Papa pergunta: “Com quem te identificas?” (n. 64), conduzindo o leitor a uma escolha inescapável. O amor ao próximo, argumenta, não é um mandamento restrito à fé, mas um fundamento antropológico: “Viver indiferente à dor não é uma opção possível” (n. 68). A crítica não poupa sequer os religiosos que “passam ao largo” (n. 73), alertando que a fé sem compaixão é estéril.

Outro ponto forte da Fratelli Tutti é sua crítica à cultura digital e à falsa comunicação. Francisco observa que “as relações digitais […] não constroem verdadeiramente um ‘nós’” (n. 43), alertando para os perigos da polarização, da desinformação e da perda da escuta. Para ele, a comunicação digital criou “formas insólitas de agressividade” (n. 44) e facilitou “mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático” (n. 45). Isso compromete a possibilidade de diálogo autêntico, essencial para a construção da paz e da justiça.

A encíclica também se destaca por recusar a neutralidade. Ao afirmar que “todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra” (n. 79), Francisco assume uma posição profética: a de que não há ética sem engajamento. Ele insiste que “ninguém se salva sozinho” (n. 32) e que só é possível reconstruir o tecido social a partir de um “nós” solidário, que reconheça a dignidade de todos.

Em conclusão, Fratelli Tutti é mais que um documento da Igreja: é um chamado à resistência ética. Contra a lógica do lucro, do descarte e da indiferença, o Papa propõe a fraternidade como critério para reorganizar nossas sociedades. O amor ao próximo, longe de ser um princípio religioso exclusivo, torna-se o alicerce de um novo humanismo, capaz de reorientar a política, a economia e a cultura. A fraternidade que Francisco propõe não é um adorno moral, mas uma urgência histórica.

REFERÊNCIA:

FRANCISCO. Fratelli tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. Vaticano, 3 out. 2020. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em: 25 abr. 2025.