O povo de Deus vivia na Palestina, periferia do Império Romano, e a Galileia, como nosso nordeste, era a periferia das periferias. Uma pesquisa em Petrolina mostra a semelhança geográfica entre as duas regiões. Temos uma história comum do ponto de vista geográfico, político, econômico e social. Vivemos a opressão das autoridades locais, da desigualdade nacional e dos poderes religiosos.
O pensamento de Frei Carlos Mesters me fez perceber que vivemos no porão da humanidade e na contramão da história. Não foi uma escolha, nascemos aqui onde só podemos sobreviver na contramão e nosso sonho é participar de um mundo desinvertido, onde a pirâmide se torne vértice e as armas da sabedoria popular substituam os fuzis.
A pergunta pela sobrevivência
A resposta do evangelista Lucas sobre o sobreviver é a esperança que não se encontra no Templo, nas Sinagogas nem nos palácios, mas na casa dos pobres.
A população de rua está mais próxima do Reino de Deus do que nós. Em uma ceia de Natal fiquei impressionado com a alegria desses nossos irmãos, que entendem, que prestam atenção na homilia e cantam alegremente. Eu me senti em uma igreja sem cercas, o significado da libertação, fui evangelizado.
O espaço da liberdade é o lugar do perigo, do conflito, da doença. Mas é também o espaço da solidariedade, de ceder o lugar na fila da sopa para os mais vulneráveis e apartar a briga dos outros. No entanto, é o lugar de ouvir a história de cada um e sofrer com quem sofre e dançar o amor com todas e todos.
A pergunta pelo olhar
A questão do olhar perpassa todos os evangelhos. O pobre de Lucas não olha para o chão nem para cima, segue em frente esperançando, sabendo que o amanhã chegará com suas complicações e belezas. O Reino de Deus é um grande mutirão, uma construção que resista às tempestades. Podemos dormir tranquilos como os pássaros do céu e ser vestidos como o lírio dos campos.
O pobre entende de justiça, de beleza e de amor, suas armas são de paz e Deus é o seu escudo. Colher, cantar e conversar são os mandamentos da rua. Um morador de rua de Feira de Santana era cantor e fazia do seu peito um tamborim. Acompanhando sua voz serena. Uma vez me disse que era chamado de excluído. Entretanto, não queria ser incluído no espaço da opressão.
Nos ver com o olhar do pobre é oportunidade. A sabedoria não está nos livros, mas em quem sabe viver. Cada pessoa é uma estante de conhecimento acessível a todas e todos.
A mulher invisível
No início do capítulo cinco, Jesus mostra uma mulher depositando duas moedas no gazofilácio, tudo o que tinha, enquanto os ricos depositavam grandes quantias, das suas sobras. Deus aceitou a oferta da viúva, mas não as sobras dos ricos. Deus não gosta de sobras.
Medimos as pessoas pela conta bancária e não pelo seu caráter. Os pobres nada têm, ainda repartem, apartam brigas em nome da justiça e dão o seu lugar na fila da sopa para os mais vulneráveis. Choram com os que choram e dançam com os que sofrem.
As suas tristezas passam como a fumaça. Seus mandamentos estão escritos na areia e se desfazem quando o vento sopra.
São desconfiados e hospitaleiros, escondem os seus nomes e a sua sabença, estão prontos para brigar ou ocar o pneu dos carros dos ricos. Jogam fora a comida que não gostam. Riem de si e dos outros. Confiam nos padres e pastores desconfiando e cantam alto para a glória do Pai. Sabem que somos todas filhas e filhos do mesmo Pai. Amam e querem a palavra de Deus. Amam a Bíblia, mas nosso Salvador não escreveu livro nenhum.
A figueira invisível
Havia uma figueira que só dava frutos no tempo próprio, esquecidas que foram criadas para servir no tempo da fome e não eram donas do que em si floria. Quem vivia no Reino do Pai não tinha tempo para comer e repartia com todas e todos o pouco que tinham. Nas casas dos ricos, os trabalhadores não podiam comer a comida dos donos e os adoentados comiam as migalhas que caiam das mesas.
Na casa do Pai não havia distinção, todos e todas cominam do bezerro gordo e do perdão do Pai.
Uma mulher sangrando bateu na casa de vários ricos pedindo socorro e muitos nem abriram a porta. Na favela, lhe oferecem uma cadeira, um carro a levou para a emergência e todos contribuíram com toalhas, lençóis e dinheiro para ajudar. Quem sofre a injustiça entende mais de justiça e quem mais recebeu desamor entende mais de amor.
Ver, ouvir, agir e Celebrar
Os profetas viveram em situações mais restritas do que a maioria de nós, líderes religiosos. Chegamos como o dono de Deus e somos tratados com regalias. Trabalhamos em terra arada e o Pai chegou antes de nós para onde nos enviou. A sabedoria dos nativos aprendem na sua tradição do Pai, das plantas, das mulheres e dos homens.
O missionário Pablo Richard conta que depois de ler as narrativas do Livro Sagrado, o cacique explicou que Jesus era índio, um poderoso Pajé de uma tribo longínqua. O modo como curava quem os procurava, o modo de contar verdades através de histórias, a bondade para com todos e o fato de transmitir segredos para as mulheres confirmava isso.
O antropólogo Darcy Ribeiro conta que na tentativa de pacificar tribos hostis, os indigenistas ficaram apavorados quando uma tribo apareceu, retesaram seus arcos por três vezes e depois desapareceram. Posteriormente, compreendeu que estavam tentar apaziguar a violenta tribo de brancos, mostrando que eram pacíficos, mostrando suas armas sem usar.
Somos chamados a aprender com as periferias, a ver, agir e celebrar. Enxergar os sinais do tempo, enfrentar os perigos e celebrar a vitória do amor. Convidadas a descalçar os sapatos da Terra Santa que ferimos, respirar com avidez o ar que poluímos e celebrar o amor que desconhecemos. Deus é o Pai de todas e todos e Jesus nos convida a dançar ciranda. A pedra do seu anel brilha mais do que o sol. Corremos como crianças pelo parque do Grande Cacique que não faz acepção de pessoas.
Um dia estaremos, cingidos com uma toalha, lavando os pés de Abraão, Mãe Menininhia, Frei Ibiapina, Krenak e Marielle, com muita louvação.
Saravá, Axé, Aleluia, amém.
Marcos Monteiro CEBI-AL
Roteiro preparado pelas irmãs Pias Discípulas do Divino Mestre – Pastoral Vocacional Site: www.piasdiscipulas.org.br
A porta de entrada na Semana Santa é a memória solene da entrada de Jesus em Jerusalém, “porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lucas 13,22]. Normalmente passamos rápido demais da procissão dos ramos ao relato da paixão. Mas é importante nos deter no mistério profundo desta epifania de Jesus que reúne todo o sentido espiritual da Semana Santa. Os relatos de Marcos Mateus e Lucas estão em sintonia entre si sobre a interpretação deste evento pascal. Neste domingo, escutamos a narrativa de
Marcos 11,1-10:
Multidões de peregrinos ocupam a cidade de Jerusalém na festa da Páscoa. Jesus não é um peregrino a mais, anônimo, perdido no meio da multidão. Jesus sobre a Jerusalém para cumprir o seu destino. Chega com os discípulos no limiar da cidade santa. Esta soleira que não é apenas a fronteira de uma cidade, mas o limite de uma vida. Jesus sente e sabe que seu caminho vai em direção à morte. E quando o futuro desaparece, o olhar se volta para o que está próximo.
Jesus, então se volta para os discípulos, envia dois deles, sem citar nome, e lhes dá responsabilidade sobre os preparativos de sua entrada solene em montaria régia. Os detalhes sobre o burrinho [7 dos 11 versículos] mostra toda a sua importância no contexto. Jesus entra na cidade como o Messias descrito pelo profeta Zacarias 9,9: rei justo e humilde, montado em um jumento emprestado [v. 3], sem tropas e sem armas, para destruir todo armamento e proclamar a paz. A participação ativa dos discípulos indica o profundo entrelaçamento entre o discipulado e a missão de paz de Jesus. Os discípulos e discípulas que subiram com Jesus a Jerusalém estão na sua escola. Um ditado rabínico afirma que “uma pessoa aprende pelos caminhos que percorre”. Os discípulos e discipulas aprendem medindo os seus próprios caminhos com os passos percorridos por Jesus.
A procissão que acompanhará esta entrada (v. 8-10) apresenta traços régios, como transparecem nos mantos espalhados pelo caminho e nas aclamações. O povo reconhece em Jesus o Messias como um novo Davi poderoso, conquistador, que iria devolver a Israel a soberania. Projetam sobre Jesus a sua ideia de Messias: “Bendito seja o Reino vindouro de nosso pai Davi”.
E no entanto, Jesus frustra esta expectativa. Jesus sempre anunciou o Reino de Deus, não de Davi. Passou a vida inteira desmontando a ideia de triunfo que imperava no povo e nos seus discípulos, fugiu daqueles que queriam fazê-lo rei (…). Com sua “entrada em Jerusalém”, Jesus desconcerta a todos. Diante dele é preciso decidir.
E então, veremos que a maioria dos que hoje o recebem como rei, pedirão que seja crucificado. O aparente êxito de hoje, será transformado no aparente fracasso dos dias que virão. Mas em Jesus, é no extremo fracasso, que êxito será revelado. “Quando eu for exaltado atrairei todos a mim”. Martín Buber, lembra que as realidades significativas se realizam mais na profundidade do fracasso que na superficialidade do êxito. No fracasso nossa consciência fica marcada para sempre.
Neste domingo o adentrar as portas da igreja com nossos ramos, o convite que chega até nós e a toda a Igreja é o de voltar o nosso olhar, para aquele que foi levantado como a serpente foi levantada por Moisés no deserto. A liturgia da Semana Santa, como toda a liturgia da Igreja, nos coloca diante do Pai, do lugar do filho, recordando ao Pai seu amor e a sua obediência. Neste curto espaço de tempo de uma semana, que vamos nos submergir no Mistério da MORTE DO FILHO, é a partir de seus passos, e não de nossos pensamentos, que cada coisa terá um novo olhar. O caminho que se abre é o caminho da não violência, do amor gratuito, da obediência à Palavra.
A violência, na sua raiz mais profunda, é uma absolutização do ego. Seguir o caminho de Cristo significa aprender o caminho da mansidão, isto é, de aceitar colocar limites em nós para acolher e dar espaço ao coletivo, às grandes causas humanitárias.
Seguir o Senhor para estar com Ele, para servi-Lo, fazer um silêncio profundo sobre nossas necessidades, sobre nossos pensamentos, sobre nossos sentimentos, sobre nossas opiniões. Estar atentos aos acontecimentos sem a interferência de nosso eu, sequer para tentar compreender. Silêncio receptivo: somente a ação de Deus, seus atos, suas palavras, seu silêncio. Podemos repetir ao longo destes dias uma pequena oração “Não eu, Senhor, senão Tu”.[1] Ou como nos inspira nossa Madre Escolástica: “Só tu, e basta!”
PARA BEM CELEBRAR O TRÍDUO PASCAL
O Tríduo Pascal não é preparação para a solenidade da Páscoa [como acontece com outros tríduos], mas é a própria celebração pascal em três dias: a sexta-feira da paixão, o sábado do seu repouso e o domingo do seu ressurgir dos mortos [segundo Santo Ambrósio][2] ou, o Sagrado Tríduo da cruz, sepultura e ressurreição [segundo Santo Agostinho][3]. A celebração da Ceia do Senhor ao anoitecer da quinta-feira com caráter de “primeiras vésperas”[4], é solene abertura do Tríduo que culmina na Vigília da noite pascal.
Toda a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II teve como finalidade devolver ao povo de Deus o acesso à liturgia, qual fonte de vida espiritual. Nesta perspectiva a celebração da Páscoa como era nas origens, volta a cada ano, como festa espiritual, realidade mística e universal. Assim sendo, não basta executar os ritos, ainda que de forma precisa, é preciso celebrar e fazer silêncio para deixar ecoar no coração o mistério proclamado na assembleia litúrgica. Além de participar das celebrações litúrgicas próprias de cada dia do Tríduo, há os ofícios comunitários, sobretudo o ofício da manhã no sábado santo. Ese propõe ainda tempo de oração pessoal como preparação e aprofundamento para os momentos comunitários.O que seguem são dicas para a oração pessoal de cada dia do tríduo.
MEMÓRIA DA ÚLTIMA CEIA DE JESUS – ABERTURA DO TRÍDUO
O que celebramos:
Nesta noite repetimos em memória da Páscoa de Jesus, os gestos da sua última ceia que estrutura a Liturgia eucarística; “tomou o pão, deu graças, partiu e passou aos seus”. Com esta celebração retomamos o verdadeirosentido da eucaristia. O simples gesto de passar ao outro um pedaço de pão é um gesto despojado de poder que aponta para uma espiritualidade da mesa, baseada na gratuidade e no serviço fraterno [cf. padre Adroaldo]. Eis o gesto de Jesus na noite da em que foi entregue, tendo à mesa Judas, aquele que o iria entregar.
Para a Oração pessoal
Depois da celebração celebra-se o ofício da “Vigilância com Jesus” na capela da reposição fazendo memória da passagem de Jesus, da Ceia à Cruz. Esta oração comunitária pode ser prolongada pessoalmente, repassando no coração a Palavra e meditando em silêncio:
a) Ler pausadamente e com toda a atenção, o texto da segunda leitura 1Coríntios 11,23-26 [relato mais antigo da última ceia de Jesus]. Ler também o evangelho de João 13,1-15.
b) Rezar no coração o salmo 116 da liturgia da Palavra da missa ou o salmo 130 indicado no Ofício da vigilância com sua antífona:
Pai, se este cálice não pode passar sem que eu beba,
seja feita a tua vontade.
1. Das profundezas, Senhor clamo a ti: / escuta a minha voz!
Atento se façam teus ouvidos / ao clamor da minha prece.
2 Se reténs os pecados, Senhor, / quem poderá subsistir?
Mas em ti se encontra o perdão: / eu temo e espero.
3. No Senhor ponho a minha esperança / e na sua palavra
espera a minh’alma o Senhor / mais que os guardas pela aurora.
4. No Senhor está toda a graça, / copiosa redenção,
ele vem resgatar Israel / de toda iniquidade.
5. Glória ao Deus presente em toda a terra / que Jesus manifestou,
ao Espírito de Deus amor materno, / toda graça e todo amor.
c) Ficar em silêncio, repetindo no coração alguma palavra, deixando que os sentimentos de Jesus habite o coração.
A GRANDE SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO – Primeiro dia do Tríduo
O que celebramos:
A Sexta-Feira da Paixão, em que pese a dimensão de dor tão curtida pela piedade popular, na perspectiva bíblica, sobretudo do Evangelho de João, é “Paixão gloriosa”, celebra, pois, o Amor Maior, que se manifestará vencedor na madrugada da Ressurreição. Ao fazer memória da bem-aventurada paixão do Senhor, a Igreja comemora o seu próprio nascimento do lado de Cristo na cruz (cf. PCFP, 58). A leitura da paixão segundo João é a parte mais importante da celebração deste dia. Exalta a vitória do Cristo o servo sofredor anunciado por Isaías 52,13-53,12 que fez da sua vida uma oferenda de amor até o fim (Hebreus 4,14-16;5,6-7).
Para a Oração pessoal
a) Os Ofícios da manhã e do meio-dia celebrados na igreja despojada [não na capela da reposição] e a solene celebração da tarde em si já oferecem uma experiência contemplativa do Mistério celebrado neste dia.
b) Esta contemplação pode ser prolongada depois de cada celebração, repassando no coração a Palavra e meditando em silêncio.
3) Em algum momento do dia, ler com calma, o texto que segue sobre o sentido espiritual deste grande dia em seu duplo mistério:[5]
[…]. A Igreja primitiva chamava a este dia “A Páscoa da Cruz,” porque ele é de fato o começo desta Páscoa ou Passagem cujo sentido nos será revelado progressivamente; primeiro na paz do grande e santo Sabbat, depois na alegria do dia da Ressurreição.
Mas antes, as trevas. Se ao menos pudéssemos compreender que as trevas da Sexta-feira Santa não são puramente simbólicas e comemorativas! É muito frequentemente com o sentimento de nossa própria justiça e de nossa própria integridade que contemplamos a tristeza solene destes ofícios. Há dois mil anos, sim, homens “maus” mataram o Cristo, mas hoje nós — o bom povo cristão — levantamos suntuosos túmulos em nossas igrejas; não é esta a prova da nossa justiça? E, no entanto, a Sexta-feira Santa não concerne somente ao passado. É o dia do Pecado, o dia do Mal, o dia no qual a Igreja nos ensina a aprender a terrível realidade do pecado e seu poder no mundo. Pois o pecado e o mal não desapareceram: ao contrário, permanecem a lei fundamental do mundo e de nossa vida. Nós que nos dizemos cristãos não entramos frequentemente nesta lógica do mal que conduziu o Sinédrio e Pilatos, os soldados romanos e toda a multidão a detestar, torturar e matar o Cristo? De que lado nós teríamos ficado se tivéssemos vivido em Jerusalém no tempo de Pilatos? Esta é a pergunta que nos é feita por cada uma das palavras do ofício de Sexta-feira Santa. É de fato “o dia deste mundo,” de sua condenação real e não somente simbólica, e do julgamento real e não somente ritual, de nossa vida. . . É a revelação da verdadeira natureza do mundo que preferiu então e continua a preferir as trevas à luz, o pecado ao bem, a morte à vida. E condenando o Cristo à morte “este mundo” condenou-se a si mesmo à morte, e na medida em que aceitamos seu espírito, seu pecado e sua traição a Deus, estamos também condenados. . . Este é o primeiro significado, terrivelmente realista, da Sexta-feira Santa: uma condenação à morte…
No entanto, este dia do Mal cuja manifestação e triunfo estão em seu paroxismo, é também o dia da Redenção. A morte do Cristo nos é revelada como uma morte salvífica para nós e para nossa salvação. […] O Cristo dá sua morte a seu Pai e no-la dá também. Ele a dá a seu Pai porque não há outro meio de destruí-la e libertar a humanidade dela; ora, é a vontade do Pai que os homens sejam salvos da morte. O Cristo nos dá sua morte porque na verdade é em nosso lugar que Ele morre. A morte é o fruto natural do pecado, um castigo iminente. O homem escolheu não mais estar em comunhão com Deus, porém como ele não tem a vida nele mesmo e por ele mesmo, morre. Em Jesus Cristo, entretanto, não há pecado, logo não há morte. É somente por amor a nós que ele aceita morrer; Ele quer assumir e compartilhar de nossa condição humana até o fim. […] Sua morte é então a revelação suprema de sua compaixão e de seu amor. […] A condenação é transformada em perdão.
[…] E enquanto o Cristo avança silenciosamente para a Cruz e para seu fim, quando a tragédia humana está em seu apogeu, seu triunfo, sua vitória sobre o mal e sua glorificação, aparecem progressivamente em luz plena. A cada passo esta vitória é reconhecida, confessada, proclamada: pela mulher de Pilatos, por José, pelo bom ladrão, pelo centurião. Quando ele morre na cruz, tendo aceito o supremo horror da morte, a solidão absoluta (Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?)” não resta senão confessar: “Verdadeiramente este homem era o filho de Deus!” Assim esta morte, este amor e esta obediência, esta plenitude de vida destroem aquilo que faz da morte o destino universal. “E os túmulos foram abertos” (Mt 27:52). Já aparecem os primeiros clarões da Ressurreição…
Este é o duplo mistério desta grande Sexta-feira; os ofícios deste dia nô-lo mostram e nos fazem participar dele. De um lado, eles insistem constantemente sobre a Paixão do Cristo enquanto pecado de todos os pecados, crime de todos os crimes. […] Por outro lado, encontramos desde o começo do ofício o segundo aspecto do mistério deste dia: o do sacrifício de amor que prepara a vitória final. […]
SÁBADO SANTO – Segundo dia do Tríduo
O que celebramos:
– No Sábado Santo, “a Igreja permanece junto ao sepulcro do Senhor, meditando sua paixão e morte, a sua descida à mansão dos mortos, e esperando na oração e no jejum a sua ressurreição” (PS 73); ela abstém-se absolutamente do sacrifício da Missa, o altar foi desnudado (Missal Romano). O foco é a sepultura do Senhor, certificação de sua morte, pertencente à forma mais antiga da fé: ‘Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras’ (1Cor 15,3-4). Na liturgia ressoa o convite: “Cristo por nós padeceu, morreu e foi sepultado: vinde todos, adoremos!”
Para a Oração pessoal
O sábado santo é o segundo dia do tríduo, carrega em si um aspecto fundamental do mistério pascal do Senhor. Mesmo tendo de cuidar dos preparativos da grande vigília na noite pascal, é importante é importante consagrar algum momento à oração comunitária e pessoal. A Liturgia das Horas e a sua versão inculturada, o Ofício Divino das Comunidades, oferecem as orações para esse segundo dia do Tríduo. A insistência é que se celebre com o povo o Ofício de Leituras na madrugadinha e a Oração da manhã [ou ofício da manhã e do meio dia]. Tais ofícios celebrados na igreja despojada [não na capela da reposição] oferecem um ambiente contemplativo de vigilância, como as mulheres portadoras dos perfumes [miróforas] à espera da madrugada.
a) Esta contemplação pode ser prolongada depois de cada ofício, repassando no coração a Palavra e fazendo silêncio em atitude de vigilância.
b) Além disso é importante reservar um tempo pessoal em algum momento do dia, para a oração silenciosa e para a leitura espiritual. Sugerimos os seguintes textos: Os relatos evangélicos referentes aos sepultamento de Jesus: João 19,38-42 e Lucas 23,50-56 [ver também Mateus 27,56-61 e ; Marcos 15,42-47].
c) Textos sobre o sentido espiritual do sábado santo:
Alexandre Schmémann, Olivier Clément [padres da Igreja Oriental]:
O ‘grande e santo Sabbat’ é o dia que liga a Sexta-Feira santa, à comemoração da Cruz, ao dia da Ressurreição. Para muitos, a verdadeira natureza e o sentido desta ligação, a necessidade real deste dia intermediário, permanece obscura. Para a grande maioria daqueles que vão à igreja, os dias “importantes” da grande semana são a Sexta-feira e o Domingo, a Cruz e a Ressurreição. Estes dois dias, entretanto, ficam de alguma forma distintos. Há um dia de tristeza e depois um dia de alegria. Nesta sucessão, a tristeza é simplesmente substituída pela alegria. Mas segundo o ensinamento da Igreja, expresso na sua tradição litúrgica, a natureza desta sucessão não é uma simples substituição. A Igreja proclama que o Cristo “venceu a morte pela morte”; isto quer dizer que, antes mesmo da ressurreição, coloca-se um acontecimento no qual a tristeza não é simplesmente substituída pela alegria, mas ela própria é transformada em alegria. O grande Sábado é precisamente este dia de transformação, o dia em que a vitória germina de dentro mesmo da derrota, uma vez que antes da ressurreição nos é dado contemplar a morte da própria morte. . . E tudo isso é expresso – mais ainda, tudo isso é realmente atualizado – a cada ano, neste maravilhoso ofício matinal, na comemoração litúrgica que se torna para nós um “presente” salvador e transformador.
Bento XVI [2/5/2010]:
O Sábado Santo é aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso permanecer na morte. A solidariedade mais radical. Todos temos sentido alguma vez uma sensação espantosa de abandono. Isto é o que mais tememos da morte. Como os meninos, nos dá medo ficarmos sozinhos na escuridão. Só a presença de uma pessoa que nos ama nos dá segurança. Pois bem, isto é o que ocorreu no Sábado Santo: no reino da morte ressoou a voz de Deus. Aconteceu o inimaginável: que o Amor penetrou “nos infernos”: na obscuridade extrema da solidão humana mais absoluta. Também nós podemos escutar a voz que nos chama e a mão que nos toma e nos tira para fora. O ser humano vive porque é amado e pode amar. E se no espaço da morte penetrou o amor, então chegou ali a vida. Na hora da extrema solidão, nunca estaremos sozinhos.
Padre Adroaldo Palaoro:
O silêncio de Deus deve ser respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl. 116,15): o Pai não estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas? Não será que o silêncio do Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar? Quê Deus não tem direito de guardar silêncio? Quem somos nós para exigir de Deus que nos esteja falando continuamente? Se não oramos a partir desse silêncio, é porque ainda não mergulhamos no mistério do Amor compassivo. […] O Pai está de luto; toda a natureza, em silêncio, acolhe a semente do Corpo do Verbo, na esperança de germinar Vida plena. O Sábado Santo, portanto, não é o mutismo de Deus, mas seu Silêncio, ou seja, a ação oculta de Deus estendida no tempo; morte e ressurreição são simultâneas no presente de Deus, mas no acontecer humano só podem ser sucessivas.
Antiga Homilia no grande Sábado Santo [(s. IV), lido do ofício das leituras]:
Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.
Ele vai antes de tudo à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos.
O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará.
Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora digo, e com todo o meu poder, ordeno aos que estavam na prisão: ‘Saí!’; e aos que jaziam nas trevas: ‘Vinde para a luz!’; e aos entorpecidos: ‘Levantai-vos!’
Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te dentre os mortos; eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e eu em ti, somos uma só e indivisível pessoa.
Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu filho; por ti, eu, o Senhor, tomei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra; por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio, abandonado entre os mortos. Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim, crucificado. […]
Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti.
Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu, porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles te adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”.
O DOMINGO DA RESSURREIÇÃO – Terceiro dia do Tríduo
Domingo da Páscoa na Ressurreição, “máxima solenidade do ano litúrgico” (PSL, 148).
A primeira celebração deste domingo maior é a Vigília Pascal,Mãe de todas as Vigílias da Igreja.
O que celebramos:Nesta NOITE os nossos pais e mães passaram pelas águas do Mar Vermelho livres da escravidão. Foi nesta noite que Jesus rompeu o inferno, e tornou para nós o novo Adão e a própria noite, e tão só ela, soube a hora em que Cristo ressurgiu da morte. Nesta noite, também nós passamos pelas águas batismais da Páscoa e renovamos o que professamos.
Para a oração pessoal – Lectio das leituras da Liturgia da Palavra[6]
a) Ler com atenção cada uma das 7 leituras, liturgia diária, ou no missal. Prestar atenção nas palavras que chamam a nossa atenção…
b) Ler a oração, buscando perceber a conexão que esta faz da leitura com o batismo
c) Por último ler a leitura da carta aos Romanos e o relato da ressurreição segundo Marcos
1ª Leitura de Gn 1,1-2,2; ou 1,1.26-31 – sobre a criação
Oração: Deus eterno e todo-poderoso,que dispondes de modo admirável todas as vossas obras, dai aos que forem resgatados pelo vosso Filho a graça de compreender que o sacrifício do Cristo, nossa Páscoa, na plenitude dos tempos, ultrapassa em grandeza a criação do mundo realizada no princípio. Por Cristo, nosso Senhor.
2ª Leitura de Gn 22,1-18 sobre o sacrifício de Abraão
Oração: Ó Deus, Pai de todos os fiéis, vós multiplicais por toda a terra os filhos da vossa promessa, derramando sobre eles a graça da filiação e, pelo mistério pascal, tornais vosso servo Abraão pai de todos os povos, como lhe tínheis prometido. Concedei, portanto, a todos os povos a graça de corresponder ao vosso chamado. Por Cristo, nosso Senhor.
3ª Leitura de Ex 14,15-15,1 sobre a passagem do mar Vermelho
Oração: Ó Deus, vemos brilhar ainda em nossos dias as vossas antigas maravilhas. Como manifestastes outrora o vosso poder, libertando um só povo da perseguição de Faraó, realizais agora a salvação de todas as nações, fazendo-as renascer nas águas do batismo. Concedei a todos os seres humanos tornarem-se filhos de Abraão e membros do vosso povo eleito. Por Cristo, nosso Senhor.
4ª Leitura de Is 54,5-14 sobre a nova Jerusalém:
Oração: Deus eterno e todo-poderoso, para a glória do vosso nome, multiplicai a posteridade que prometestes aos nossos pais, aumentando o número dos vossos filhos adotivos. Possa a Igreja reconhecer que já se realizou em grande parte a promessa feita a nossos pais, da qual jamais duvidaram. Por Cristo nosso Senhor.
5ª Leitura de Is 55,1-11 sobre a “salvação oferecida a todos gratuitamente”
Oração: Deus eterno e todo-poderoso, única esperança do mundo, anunciastes pela voz dos profetas os mistérios que hoje se realizam. Aumentai o fervor do vosso povo, pois nenhum dos vossos filhos conseguirá progredir na virtude sem o auxílio da vossa graça. Por Cristo, nosso Senhor.
6ª Leitura de Br 3,9-15.31-4,4 sobre “a fonte da sabedoria”
Oração: Ó Deus, que fazeis vossa Igreja crescer sempre mais chamando todos os povos ao Evangelho, guardai sob a vossa proteção os que purificastes na água do batismo. Por Cristo, nosso Senhor.
7ª Leitura de Ez 36,16-28 – sobre “um coração novo e um espírito novo”:
Oração: Ó Deus, força imutável e luz inextinguível, olhai com bondade o mistério de toda a vossa Igreja e conduzi pelos caminhos da paz a obra da salvação que concebestes desde a eternidade. Que o mundo todo veja e reconheça que levanta o que estava caído, que o velho se torna novo e tudo volta à integridade primitiva por aquele que é princípio de todas as coisas. Por Cristo, nosso Senhor.
8ª Leitura de Rm 6,3-11– o nosso batismo na morte de Cristo
9. Evangelho de Marcos 16,1-7
A segunda celebração é a do dia da ressurreição,
O que celebramos:
O domingo da ressurreição é celebrado com grande solenidade (PS 97) o dia que o Senhor fez para nós.
Para a oração pessoal:
a) Fazer a Leitura orante do evangelho de João 20,1-18: não só a trecho indicado para este dia [1-10], mas até o versículo 18, que inclui o encontro com Madalena, a discípula amada.
b) Em algum momento do dia, ler com calma, o texto que segue sobre o sentido espiritual deste grande:
Alexandre Schmémann, Olivier Clément [padres da Igreja Oriental]:
Na Páscoa os esponsais são consumados. No Ressuscitado é a humanidade inteira, e o cosmos, que se acham secretamente recriados, transfigurados. Em sua hipóstase divina, portanto perfeita, e pela qual nada de exterior pode existir, o Cristo, através de uma comunhão sem limites, assume todo ser criado e o arrebata em sua ressurreição. […]
Em Cristo sempre vivo e presente no Espírito, cada um de nós morre e ressuscita: “Ontem, eu estava enterrado contigo, ó Cristo; hoje eu acordo contigo, ó Ressuscitado; Salvador, glorifica-me contigo em teu Reino.” A Ressurreição tem um alcance cósmico pois o corpo engloba secretamente o cosmos inteiro. Por isso o universo é chamado a rejubilar-se após ter tremido de um horror sagrado diante da Paixão e do enterro de seu Criador. “Que todo o universo esteja em festa, toda a terra… pois ele ressuscitou, o Cristo, alegria eterna.”
[…] Doravante a vida e a luz nos chegam mesmo pela morte e por todas as situações de morte de nossa existência se as “configuramos” na fé na cruz do Cristo sobre a qual ele venceu a morte. Por isso o mártir é o mais elevado estado místico do cristianismo. […] Não somente a morte está repleta de luz, como também o inferno: “Agora tudo está repleto de luz: o céu, a terra e o inferno.” Deus é tudo em todos. A apocatastase (a salvação universal) é oferecida à humanidade.
Não é, pois, de se impressionar que esses textos tenham fortes ressonâncias escatológicas: a luz da Páscoa é a mesma da Parusia. A Páscoa já é o Oitavo dia em que se inaugura a luz sem declínio. É o “dia do Senhor,” no sentido escatológico de que se reveste esta expressão na Bíblia: “É agora o dia insigne e santo, único nas semanas, o rei e o Senhor dos dias, a festa das festas.” […] O mundo só existe através das existências pessoais: sua transfiguração escatológica, inaugurada em Cristo, deve ser decifrada, assumida, reinventada e difundida pela comunhão dos santos, até que ela tenha atingido seu “pleroma,” conforme uma medida que não é a da história “objetiva,” mas a de Deus.
No Espírito Santo, a luz pascal, vida do Ressuscitado, nos é comunicada pela eucaristia que constitui a Igreja, que a funda sobre o “mistério pascal”: “Vinde, neste dia da Ressurreição, comungar o fruto novo da vinha, a alegria divina, a realeza do Cristo.” Uma vez que a eucaristia nos incorpora ao Ressuscitado, nós podemos, pouco a pouco, por uma ascese de vigilância, nos acordarmos para nossa ressurreição no Ressuscitado, de modo que nós contemplamos conscientemente nossa reunião com ele. […] “Vigiemos até o final do dia; em lugar da mirra, ofereçamos um hino ao Senhor e nós veremos o Cristo, Sol de Justiça, fazer brotar a vida para todos.”
[4]Ao longo da Idade Média, em consequência da decadência de toda a liturgia da Igreja, o tríduo pascal passou por tal deformação que o domingo da páscoa já não contava como parte do Tríduo [considerado como tal a quinta, a sexta e o sábado]. O sábado da sepultura desapareceu do horizonte espiritual da Igreja e tomou o lugar do domingo, denominado “Sábado de Aleluia”. Por isso, o papa Pio XII (1876-1958), incentivado pelo movimento litúrgico propôs Reforma da Vigília pascal [1951] a da semana santa [1955]. Entre outras coisas estabeleceu a hora da missa vespertina da ceia do Senhor [não antes das 17 horas] bem como a hora da vigília, de preferência depois da meia noite de sábado para o domingo. Com isto se restabelecia os dias do tríduo pascal: sexta da paixão, sábado da sepultura e domingo da Ressurreição, com seu solene início na noite da quinta [que na contagem da liturgia já pertence ao dia seguinte]. O dia da Quinta-feira santa, portanto, pertente à quaresma, não ao tríduo.
Uma reflexão bíblica feita pelo pe. Adroaldo Palaoro, jejuíta, na reflexão deste 14º domingo do Tempo Comum – ano A, do evangelho de Mateus 11, 25-30.
“…porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11,29)
Inútil discutir e dar voltas: o distanciamento social veio e começou a fazer parte do nosso ritmo cotidiano; não nos resta outro remédio a não ser tomar medidas para aprender a manejá-lo e a incorporá-lo em nossa vida da maneira menos danosa possível. De fato, seus perigos são evidentes: o distanciamento físico (“que só se aproximem até um metro”), pode gerar o distanciamento social (“que não me venham com mais problemas, porque já tenho os meus”) e desembocar no distanciamento emocional (“olho ao meu redor e sinto as pessoas como uma ameaça”).
O evangelho deste domingo pode nos oferecer uma inspiração neste momento dramático que vivemos.
Jesus nos revela que toda manifestação de distanciamento (sanitário, físico, social, religioso, cultural, político…) pode ser quebrado a partir do coração. Toda proximidade com o outro começa pelo coração. Nesse sentido, encontramos uma pérola de grande valor naquilo que o evangelista Mateus nos des-vela: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”.
Ao se apresentar como referência para os seus discípulos – “aprendam de mim! ”-, Jesus frisou duas atitudes pelas quais pautava a sua vida: a mansidão e a humildade. Elas são o reflexo das bem-aventuranças que Ele sempre deixou transparecer no encontro com os outros. É do coração que brotam a mansidão e a humildade, únicos remédios que substituem a expressão do afeto e a cordialidade manifestada por via táctil (dar as mãos, abraçar…). Mesmo quando a situação impede que mãos e braços se encontrem, os corações se abraçam.
Este “tempo de confinamento” está nos fazendo tomar consciência de nossas debilidades, quebrando toda pretensão de auto-suficiência e de soberba; ao mesmo tempo, está nos fazendo experimentar que não somos donos de nossos estados de ânimo e que precisamos dedicar tempos ao descanso e à gratuidade. Vivemos em meio à cultura da produtividade, da competição, da eficiência, e isso nos deixa cansados, raivosos, angustiados e tristes, sem um motivo aparente e sem poder encontrar uma solução para isso. Constatamos que nossa fragilidade carrega em si a necessidade de sair, de passar tempos distendidos, de reaprender a estar com os outros, de oxigenar nossa vida em meio a tantos venenos que nos asfixiam…
A humildade e a mansidão do coração nos trazem para o chão da vida e nos possibilitam viver com mais humanidade. E estas duas virtudes estão disponíveis, em abundância, no nosso interior. Basta abrir espaços para elas e o nosso cotidiano adquirirá novo sabor e calor. É suave a condição humana quando, em vez de ocultar nossa debilidade, descobrimos com assombro que é ela que nos conduz pela mão a nos aproximar calorosamente dos demais. Quando vivemos a debilidade de forma agradecida, é mais fácil perdoar que condenar, compreender que murmurar, aceitar que julgar. A debilidade humana descansa nas mãos de Deus. Talvez seja esta a aprendizagem principal de nossa vida, pois a temos saboreado internamente. Só assim poderemos oferecer, também nós, um lugar acessível de repouso para os cansaços e fragilidades dos outros.
“Descansar” não é a outra face da ação de trabalhar; é participar, ter parte, na vida mesma de Deus, onde ação e repouso coincidem numa única pulsação, num único movimento de segurança e de felicidade, de consentimento e de abandono, nessa Presença Humilde que flui dentro de nós, nos atrai e nos conduz com suavidade. O decisivo é ir ao seu encontro e deixar-nos aliviar, para aprender d’Ele a sermos mais humanos. Se vivemos só em chave de mandamentos, de doutrinas, de normas…, comeremos pão de fadigas e sentimento de culpa; se vivemos em chave de bem-aventuranças, certamente poderemos caminhar aliviados, porque o peso e a fecundidade da vida estão apoiados em Outro e não dependem só de nós. Nesse sentido, as bem-aventuranças da humildade e a mansidão são o terreno sólido sobre o qual podemos assentar nossa vida e ativar todas as potencialidades humanas que nos habitam.
“Humildade” vem de húmus, chão, barro. Ela está vinculada ao amor à verdade e a ele se submete. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. “Humildade é andar na verdade” (S. Teresa). “Onde está a humildade, está também a caridade” (S. Agostinho). É que a humildade leva ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe; sem a humildade, o ego ocupa o espaço disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade nos conduz à pura gratuidade do amor desinteressado.
Por outro lado, aqueles que vivem sob o impulso da mansidão, não rejeitam nada, não exigem nada. Estão abertos às surpresas da vida, vão interiorizando as contrariedades de cada dia e ampliando um espaço no próprio interior, onde acolher a realidade e reafirmá-la; revelam um coração que cria e alimenta proximidades com todos, porque pulsa no ritmo do coração do outro, fisicamente presente ou distante.
A mansidão se assemelha a um sentimento de não-violência ativa, a “essa capacidade passiva derecepção que se encontra no fundo da estrutura da pessoa” (Edith Stein).
Mansidão não é debilidade, mas força suavizada; ela não é a atitude medíocre daqueles que se sentem anulados pela presença violenta do outro. É força que não provém da violência externa, mas de uma transformação interna. Por isso, o manso pode realizar ações impossíveis a quem é violento e sentir-se bem-aventurado e feliz, uma vez que tem esperança de conquistar o coração dos outros e se encontra entre os que herdarão a “terra prometida” do coração de Deus. A mansidão cristã, reflexo daquela de Jesus, é plena de força. Suavidade e força que recorda o modo “suave-forte” divino de agir. Trata-se daquela harmonia conquistada pelo ser humano que alcançou seu centro mais profundo e ali encontra o dom da liberdade. A mansidão é o estado interior a ser alcançado pelos corações dos homens e mulheres livres. Nessa ótica, de fato, quando perdemos a mansidão, vemos nossa liberdade diminuída. Entramos na lógica do revide e a emoção indomada preside nossas ações.
Vivemos em um mundo onde imperam a prepotência, a agressividade, a vingança, o ataque e o desafio preventivo, o amedrontamento, a extorsão e a imposição violenta como meios habituais para conseguir os fins que se pretendem. Esta mesma estratégia de morte é utilizada em diferentes ambientes, tanto civis como religiosos, políticos como econômicos, entre pessoas e entre grupos ou nações. Com isso, a vida e as relações se convertem num campo de batalha contínua, como se fosse uma manada de lobos disputando o cordeiro.
Como seguidores (as) d’Aquele que é o humilde artífice da paz, testemunhamos e profetizamos que a mansidão é o verdadeiro rosto da Igreja. Não é por acaso que muitas pessoas que lutaram em favor da justiça, pagando com a própria vida, tenham essa característica comum: a mansidão (Gandhi, Luther King, Dom Romero…). São descritos como indivíduos mansos e humildes, amáveis e de agir discreto, abertos ao diálogo e à acolhida do outro, pacientes e simples. E, exatamente por isso, dotados de uma força diferente e, sobretudo, muito eficaz. Bem-aventurados os humildes e os mansos! Graças a eles o mal, na terra, pode se transformar em bem!
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: De onde brotam a mansidão e a humildade? Como ativá-las e fazê-las crescer? Ninguém pode improvisá-las. A raiz última da mansidão-humildade é contemplativa. Nasce em um clima de oração, numa proximidade íntima que faz o nosso coração pulsar no mesmo movimento do Coração compassivo de Deus. Desse encontro, de coração a Coração, emergem das profundezas de nosso ser estes dinamismos mais humanos e mais divinos. A partir da fonte original, a mansidão e a humildade vão se expandindo na direção dos outros, alimentando novas relações, acolhendo o diferente, vibrando com o bem presente no outro…
– No ritmo de sua vida, o que mais se faz visível: mansidão e humildade? Ego inflado e soberba? Agradecimento assombrado ou ingratidão venenosa? Suavidade divina ou prepotência que petrifica? ..