Nesta quinta-feira, 2 de outubro de 2025, a Igreja celebra a memória dos Santos Anjos da Guarda, inserida na 26ª Semana do Tempo Comum. A liturgia nos convida a mergulhar no Evangelho segundo São Mateus (Mt 18,1-5.10), em que Jesus coloca uma criança no centro da assembleia dos discípulos e ensina sobre a humildade necessária para entrar no Reino dos Céus.
O capítulo 18 de São Mateus é conhecido como o “discurso comunitário”. Nele, Jesus ensina aos discípulos como deve ser a vida daqueles que vivem reunidos em seu nome: marcada pela humildade, pelo cuidado mútuo, pela reconciliação e pelo perdão.
A cena começa com uma pergunta que revela certa incompreensão dos discípulos: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18,1). A lógica dos homens está sempre ligada ao poder, à grandeza e à hierarquia. Jesus, no entanto, subverte essa mentalidade ao colocar uma criança no meio deles.
No tempo de Jesus, a criança não tinha prestígio algum: era símbolo de pequenez, dependência e fragilidade. Ao apontá-la como modelo, o Mestre ensina que o verdadeiro discípulo é aquele que se coloca diante de Deus como um pequeno, consciente de que nada possui de si mesmo, mas tudo recebe como dom.
O gesto é profundamente simbólico. A criança, na sociedade do século I, não tinha direitos, nem importância social ou religiosa. Era sinal de dependência, fragilidade e necessidade de proteção. Jesus não exalta a inocência ou a pureza da criança, mas sua pequenez e sua total confiança no adulto. Ao colocar a criança no meio, Ele muda a lógica da comunidade: no centro não está o poderoso, mas o pequeno.
No versículo 3, lemos: “Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. A conversão aqui é dupla: intelectual porque nos propõe mudar a forma de pensar, deixar a mentalidade de grandeza. E também uma conversão existencial, pois nos impele a adotar a atitude de dependência confiante diante de Deus. Jesus não pede apenas “imitar as crianças”, mas “tornar-se” criança, isto é, assumir uma postura contínua de humildade e simplicidade.
“Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus” (Mt 18, 4): no Reino de Deus, não é a força que garante posição, mas a humildade. A “pequenez” não é passividade, mas atitude ativa de quem se coloca nas mãos de Deus.
Não se trata apenas de tornar-se pequeno, mas também de acolher os pequenos. Receber uma criança (ou qualquer pessoa marginalizada, frágil, dependente) equivale a receber o próprio Cristo. Esse ensinamento ecoa Mt 25,40: “todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes”.
Em Mt 18, 10: “Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo: os seus anjos nos céus veem continuamente a face de meu Pai que está nos céus”, ele reforça a dignidade dos pequenos. O motivo pelo qual ninguém deve ser desprezado é teológico: eles têm anjos que contemplam a face de Deus. Isso significa que, mesmo os mais fracos e sem importância aos olhos do mundo, são infinitamente preciosos aos olhos do Pai. Aqui aparece a base bíblica da doutrina dos anjos da guarda.
E é justamente após esse ensinamento que vem a referência aos anjos: aqueles que assistem os pequenos e que continuamente contemplam a face do Pai. Jesus declara, portanto, que cada pequenino tem diante de Deus uma dignidade infinita e uma proteção especial.
A palavra “anjo” vem do grego angelos, que significa “mensageiro”. Os anjos são criaturas espirituais, puramente imateriais, criados por Deus para O servir e adorar. Ao mesmo tempo, exercem uma missão em relação aos homens, acompanhando-os no caminho da salvação.
O Catecismo da Igreja Católica nos ensina:
- “A existência dos seres espirituais, não corporais, que a Sagrada Escritura habitualmente chama de anjos, é uma verdade de fé” (CIC 328).
- “Do seu começo até à morte, a vida humana é cercada pela sua proteção e intercessão” (CIC 336).
Na liturgia de hoje, celebramos de modo particular os Anjos da Guarda, ou seja, essa presença espiritual personalizada que acompanha cada ser humano. A Tradição da Igreja vê nesse cuidado divino uma expressão concreta do amor de Deus: Ele não nos abandona, mas coloca ao nosso lado um companheiro invisível que nos guia, nos inspira ao bem, nos protege do mal e nos conduz em direção à vida eterna.
Embora a expressão “Anjo da Guarda” não apareça de forma literal na Bíblia, encontramos diversos textos que confirmam sua missão protetora:
- Êxodo 23,20-23 – Primeira leitura da liturgia de hoje. Deus promete enviar um anjo à frente do povo, para guardá-lo e conduzi-lo à Terra Prometida. Aqui já se vê o anjo como presença concreta da providência divina.
- Salmo 90(91),10-11 – “Ele dará ordem a seus anjos para que te guardem em todos os teus caminhos.” Esse salmo é uma das expressões mais claras da confiança na proteção angelical.
- Mateus 18,10 – Evangelho de hoje: Jesus afirma que os anjos dos pequeninos veem continuamente a face do Pai. Isso revela, por um lado, a comunhão íntima que esses seres celestes têm com Deus, e por outro, a dignidade das pessoas que eles protegem.
- Atos 12,6-11 – O anjo que liberta Pedro da prisão. Aqui aparece a ação direta de um anjo guardando e conduzindo um apóstolo em perigo.
Esses textos mostram que os anjos são presença real e atuante na história da salvação, sempre a serviço da glória de Deus e do bem das criaturas humanas.
Desde os primeiros séculos, a Igreja reconhece a missão dos anjos na vida dos fiéis. Padres da Igreja como São Basílio Magno já afirmavam: “Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida”.
Na Idade Média, São Bernardo de Claraval fez um famoso sermão sobre os anjos da guarda, no qual recorda que devemos honrá-los com respeito, confiar neles com devoção e amá-los com ternura.
A devoção popular aos anjos da guarda floresceu ao longo dos séculos, sendo confirmada na liturgia. Em 1608, o Papa Paulo V estendeu a festa dos Santos Anjos da Guarda a toda a Igreja, e hoje ela é celebrada como memória obrigatória no calendário romano.
Atualizando para nossa vida
Celebrar os Santos Anjos da Guarda é renovar nossa confiança na providência divina. Num mundo onde tantas vezes nos sentimos sozinhos, desprotegidos e vulneráveis, lembrar que Deus nos concede um anjo particular é motivo de esperança.
Ao mesmo tempo, o Evangelho de hoje nos pede que aprendamos das crianças a simplicidade e a humildade, para reconhecermos nossa dependência de Deus. Só quem se faz pequeno percebe a presença delicada dos anjos e se deixa conduzir por eles.
Portanto, a liturgia de hoje une dois grandes ensinamentos:
- Do Evangelho: a necessidade da humildade e do cuidado com os pequeninos.
- Da memória litúrgica: a certeza de que Deus nos acompanha de modo invisível por meio dos seus anjos.
O Anjo da Guarda é um sinal de que nunca estamos abandonados. Deus, em sua infinita bondade, confiou a cada um de nós um companheiro espiritual que nos guia no caminho do bem. O Evangelho nos ensina que esses anjos contemplam o rosto do Pai, e por isso sua missão é sempre fruto da intimidade com Deus.
Que, nesta memória dos Santos Anjos da Guarda, possamos abrir o coração para essa presença discreta e fiel, e viver com confiança e humildade, como crianças no colo de Deus.
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